sexta-feira, 19 de setembro de 2008

ANTÍNOO


Era em Adriano fria a chuva fora

Jaz morto o jovem
No raso leito, e sobre o seu desnudo todo,
Aos olhos de Adriano, cuja cor é medo,
A umbrosa luz do eclipse-morte era difusa

Jaz morto o jovem, e o dia semelhava noite lá fora
A chuva cai como um exausto alarme
Da Natureza em acto de matá-lo.
Memória do que el´ foi não dava já deleite,
Deleite no que el´ foi era morto e indistinto.

Oh mãos que já apertaram as de Adriano quentes,
Cuja frieza agora as sente frias!
Oh cabelo antes preso p´lo penteado justo!
Oh olhos algo inquietantemente ousados!
Oh simples macho corpo feminino
qual o aparentar-se um Deus à humanidade!
Oh lábios cujo abrir vermelho titilava
os sítios da luxúria com tanta arte viva!
Oh dedos que hábeis eram no de não ser dito!
Oh língua que na língua o sangue audaz tornava!
Oh regência total do entronizado cio
Na suspensão dispersa da consciência em fúria!
Estas coisas que não mais serão.
A chuva é silenciosa, e o Imperador descai ao pé do leito.
A sua dor é fúria,
Porque levam os deuses a vida que dão
e a beleza destroem que fizeram viva.
Chora e sabe que as épocas futuras o fitam do âmago do vir a ser;
O seu amor está num palco universal;
Mil olhos não nascidos choram-lhe a miséria.

Antínoo é morto, é morto para sempre,
É morto para sempre, e os amor´s todos gemem.
A própria Vénus, que de Adónis foi amante,
Ao vê-lo então revivo, ora morto de novo,
Empresta renovada a sua antiga mágoa
Para que seja unida à dor de Adriano.

Agora Apolo é triste porque o roubador
Do corpo branco seu ´stá para sempre frio.
Não beijos cuidadosos na mamílea ponta
Sobre o pulsar silente lhe restauram
Sua vida que abra os olhos e a presença sinta
Dela por veias ter o reduto do amor.
Nenhum de seu calor, calor alheio exige.
Agora as suas mãos não mais sob a cabeça
Atadas, dando tudo menos mãos,
Ao projectado corpo mãos imploram.

A chuva cai, e el´ jaz
como alguém que de seu amor ´squeceu todos os gestos
E jaz desperto à espera que regressem quentes.
Suas artes e brincos ora são c´o a Morte.
Humano gelo é este sem calor que o mova;
Estas cinzas de um lume não chama há que acenda.

Que ora será, Adriano, a tua vida fria ?
Quão vale ser senhor dos homens e das coisas ?
Sobre o teu império a ausência dele desce como a noite.
Nem há manhã na esp´rança de um deleite novo;
Ora de amor e beijos viúvas são as tuas noites;
Ora os dias privados de a noite esperar;
Ora os teus lábios não têm fito em gozos,
Dados ao nome só que a Morte casa
À solidão e à mágoa e ao temor

Tuas mãos tacteiam vagas alegria em fuga
Ouvir que a chuva cessa ergue-te a cabeça,
E o teu relance pousa no amorável jovem.
Desnudo el´ jaz no memorado leito;
Por sua própria mão el´ descoberto jaz.
Aí saciar cumpria-lhe teu senso frouxo,
Insaciá-lo, mais saciando-o, irritá-lo
Com nova insaciedade até sangrar teu senso.

Suas boca e mãos os jogos de repôr sabiam
Desejos que seguir te doía a exausta espinha.
Às vezes parecia-te vazio tudo
A cada novo arranco de chupado cio.
Então novos caprichos convocava ainda
À de teus nervos, carne, e tombavas, tremias
Nos teus coxins, o imo sentido aquietado.



Fernando Pessoa (excerto)
Traduzido por Jorge de Sena a partir do original em inglês

9 comentários:

João Roque disse...

Este texto de Fernando Pessoa, se me leva por um lado, e naturalmente às "Memórias de Adriano", por outro, e mais estranhamente, conduz-me também a um poema célebre de outro Pessoa: "O Menino de sua Mãe"...
Abraço.

Anônimo disse...

Belíssimo poema. Gosto de tudo o que toque o místico.
Beijos

Anônimo disse...

É uma mistura sábia entre o místico e o carnal. Uma ode ao emocional sensual.

J. Maldonado disse...

Um belo poema! :D
Não o conhecia. Aliás, confesso que não conheço bem a poesia em língua inglesa de Fernando Pessoa...
Tal como ao Pinguim, a mim também recordou-me "As memórias de Adriano", que é uma das minhas obras favoritas.
A personalidade de Adriano fascina-me imenso, bem como a de Antínoo.

Anônimo disse...

É das histórias de amor minhas preferidas, a de Adriano e Antínoo. Abraço!

João disse...

Amores antigos, recordados em lendas e poemas que se perpetuam nas palavras e na vida...
(tem calma, K, nós esperamos - a ti e aos teus estudos: bons livros!)
Abraço Grande

Tongzhi disse...

Lindo!!!!

SP disse...

Sinto a tua falta!

Anônimo disse...

Sem dúvida, que nos remete para as "memórias de Adriano" que tão bem Yourcenar nos ofereceu como alimento do espirito e da alma ... digo isto, por ter sido a primeira história de AMOR, entre dois homens, que chegou até mim e o papel determinante que teve na minha confusa adolescência ... Como andámos para trás ao longo de séculos.
Como era bom amar o outro, sem preconceito.
JB