segunda-feira, 1 de setembro de 2008

REFEIÇÃO NUA

Apollonia and dominatrix creating pain in the heart of the west
Joel-Peter Witkin

«Leif, o Azarento, era um norueguês alto e magro, com uma venda a cobrir-lhe uma das vistas e o rosto semelhante a gelo moldado num esgar desagradável. Do seu passado constava uma saga épica de empreendimentos mal sucedidos. Falhara quando tentara a criação de rãs, chinchilas, peixes de combate siameses, rami e pérolas de cultura. Também experimentara várias vezes e sem êxito fundar um cemitério de Dois Apaixonados Num Só Caixão, fazer mercado negro de preservativos durante a falta de borracha, dirigir uma casa de prostituição e lançar a penicilina com patente. Iniciara desastrosos processos de apostas nos casinos da Europa e nas pistas de corridas de cavalos dos E.U.A.

Os azares nos negócios equiparavam-se às incríveis contrariedades da sua vida pessoal. Autênticas bestas de marinheiros americanos tinham-lhe partido os dentes da frente em Brooklyn. Tinham-lhe comido um olho depois de tomar paregórico e ter ficado inconsciente num parque da cidade do Panamá. Ficara encurralado entre andares dentro de um elevador durante cinco dias e quando estava viciado em junk. Houve uma altura em que teve um estrangulamento intestinal, perfuramento de uma úlcera e peritonite no Cairo. O hospital estava tão cheio que lhe puseram a cama na latrina; o cirurgião grego que o tratava cometeu um erro estúpido e quando o coseu deixou-lhe um macaco vivo dentro da barriga; foi fodido pelos ajudantes árabes e uma das ordenanças roubou a penicilina, substituindo-a por Saniflush; e doutra vez apanhou gonorreia, e um médico inglês cheio de princípios de dignidade, curou-o com um edema de ácido sulfúrico quente. O médico interno alemão de Medicina Tecnológica tirou-lhe o apêndice com um abre latas enferrujado e uma tesoura (na opinião dele a teoria dos germes não passava de pura «estupidez»). Deslumbrado pelos êxitos começou a cortar tudo o que tinha à mão: - O corpo humano está cheio de orgãos desnecessários. Pode-se viver com um rim. Para quê dois então?... Os orgãos internos não deviam estar tão apertados. Necessitam de espaço vital como a Pátria.»

"Refeição Nua" de William Burroughs, com o infeliz título em português de "Alucinações de um Drogado" foi o meu primeiro grande choque literário, um autêntico murro no estômago.

13 comentários:

Oz disse...

Dedididamente não é um livro para o desjejum... Fiquei intrigado. Não sei se fiquei instigado, mas intrigado fiquei.
Abraço

Catatau disse...

Ainda ontem, no Ophiocus, comentei que gostava bem deste livro, mas concordo contigo. É... heavy, mas bom.
Li-o na adolescência, depois de ter lido Viagem ao mundo da Droga e Christian F. Estes dois foram daikiris comparados com o balde de absinto em que mergulhei.

Anônimo disse...

Bem, por este bocado imagino o resto!
Beijos

Tongzhi disse...

Já em tempos o tentei ler...
Não sei se lhe voltaria a pegar...

SP disse...

Uf!!!

Que mais posso eu dizer?
Não li e depois desta apresentação nem sei.
Achas que devo ler? Alguém tão inocente como eu!! :)

Um abraço.

João Roque disse...

Pode ser e acredito que seja um bom livro, mas para desgraças, bastam os noticiários...
Abraço.

paulo disse...

Burroughs no seu melhor, cru e experimental... tudo ao molho e sem fé em deus. Aliás quem mais se mete em jogos à Guilherme Tell e acerta na mulher e é homossexual... tudo ao molho dá um cocktail difícil de digerir, mas não me conseguiste tirar a curiosidade! às vezes, gosto de choque! (mas também é tão surreal (irreal) que nem o levo a sério)

paulo disse...

esqueci-me de felicitar pela escolha da imagem do Witkin! muito apropriada!

Anônimo disse...

Fascinante, como tu!

J. Maldonado disse...

Gostei da imagem e da citação de Burroughs, que é um autor que aprecio bastante. Recomendo-te a leitura de Queer, é um livro fantástico. ;)

Special K disse...

Oz: Não é para o desjejum, mas até é um livro interessante, se tiveres estomago para aguentar duas ou três partes.
Já agora há um filme do Cronenberg, "Naked Lunch", de 1991, talvez seja mais fácil.
Um abraço

Catatau: Engraçado que também o li a reboque desses mesmos livros. Aliás sempre achei que a intenção do título era mesmo essa.
Um abraço

Gitas: Bem podes imaginar, há mais umas passagens bem piores.
Beijos

Tonghzi: Estás sempre a tempo de retomar.
Um abraço.

SP: Podes ler por tua conta e risco, mas depois não me venhas pedir explicações.
Um abraço peludo.

Pinguim: Por acaso é um bom livro, e o Burroughs é excelente, assim como os seus amigos Kerouack e Ginsberg.
Um abraço

Paulo, obrigado pelo teu comentário. Quanto à imagem, pensei logo no Witkin para ilustrar o post.
Um abraço

Nas gavetas: Obrigado, fazes-me corar.
Um grande abraço para ti também.

Maldonado: Também gostei muito do Queer, que li recentemente. Um abraço

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Eduardo Andrade disse...

É fantástica a foto escolhida para o tema abordado. E recomendo a leitura das Cidades da Neblina Vermelha, esse sim já um romance com enredo. Burroughs é estranho e diferente. O assunto não é intrinsecamente apenas a droga, o Junkie: são dos recônditos menos agradáveis que transportamos connosco.